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sexta-feira, 18 de junho de 2010

O ANALISTA DE BAGÉ



Alguém já tentou parar pra pensar na doidera que é gerar um ser dentro de outro? Eu penso nisso o tempo todo e um meu amigo levantou uma questão mais intrigante ainda. Como é que os milhões de espermatozóides sabem o caminho certo a prosseguir até chegar no óvulo?? Eles não enxergam e muito menos sentem cheiros, então como é isso?? Por que eles não param no meio do caminho ou se perdem lá pelas trompas? E como é que depois que um, finalmente, consegue entrar no óvulo os outros param de tentar? Por que eles não ficam ainda tentando eternamente?
Eu hein... Tá bem, ta bem! Coisas da natureza.
Bom, em homenagem a essa indagação, uma crônica do Luiz Fernando Veríssimo que eu adoro.

Aí vai:

- De vez em quando eu penso neles...
- Quem?
- Nos espermatozóides...
- De vez em quando você pensa nos seus espermatozóides?
- Nos meus, não. Nos do meu pai.
- Você está bêbado.
- Na noite em que eu fui concebido... Suponho que tenha sido uma noite... Eu era um entre milhões de espermatozóides. Mas só eu cheguei ao óvulo da mamãe. Ou seriam bilhões?
- Ahn... Não sei.
- Não importa. Milhões, bilhões. Só eu me criei, entende? Por acaso. Isso é o mais assombroso. A gratuidade da coisa. Havia milhões, bilhões de espermatozóides junto comigo e só eu, entende?, só eu fecundei o óvulo. Não é assombroso?
- É.
- Você acha mesmo?
- Acho.
- Podia se qualquer um, mas fui eu. Por acaso.
- Amendoim?
- Hein? Obrigado. Agora, me diga. Por que eu? A gratuidade da coisa. Só eu fecundei o óvulo, virei feto, nasci, me criei e estou aqui, neste bar, de gravata, bebendo. Agora me diga, o que é isso?
- É como você diz. A gratuidade da coisa.
- Não, não. Isso que eu estou bebendo.
- É, ahn, uísque.
- Uísque. Pois então. Aí está.
- Ó Moacyr, vê outro aqui. O rapaz está precisando.
- Um brinde!
- Um brinde.
- A eles!
- Quem?
- Aos espermatozóides que não chegaram ao óvulo de mamãe. Aos companheiros. Aos bravos que cumpriram sua missão e não vieram pra comemorar. Aos que perderam a viagem. Aos meus irmãos.
- Aos meus irmãos!
- Meus irmãos. Você não estava lá.
- Aos seus irmãos!
- Aos milhões, bilhões que se sacrificaram para que eu pudesse viver.
- Salve.
- Agora me diga uma coisa.
- Duas. Digo duas.
- Cada espermatozóide é uma pessoa diferente, certo? Quer dizer. Em outras palavras. Se outro espermatozóide estivesse completado a viagem, não seria eu aqui. Ou seria?
- Depende.
- Não seria. Seria outra pessoa. Outro nariz, outras idéias. Talvez até torcesse pelo América. Uma mulher! Podia ser uma mulher, certo?
- Não vamos exagerar...
- Então, imagina o seguinte. Pense bem. Amendoim.
- Amendoim. Estou pensando nele. Amendoim.
- Não. Me passe o amendoim e pense no seguinte. Se entre os espermatozóides que me acompanharam, e que não chegaram ao óvulo, estava o cara que ia descobrir a cura do cancêr? - Hein? Hein?
- Certo.
- Mas, em vez dele, eu é que cheguei. Por acaso. Ou podia ser uma mulher. Uma soprano de fama internacional. Em vez disso, deu eu. Veja a minha responsabilidade.
- Acho que você está sendo radical.
- Não. Imagine se em vez do espermatozóide que se transformou no Jânio quadros, tivesse dado outro. A história do Brasil seria completamente diferente! È ou não é?
- Mais ou menos.
- Pois então. Eu me sinto culpado, entende? Acho que eu devia, sei lá. Ter feito mais da minha vida. Em honra a eles. Eu estou aqui representando milhões, bilhões de espermatozóides, cada um uma pessoa em potencial. E o que é que eu fiz da minha vida?
- E se fosse um bandido?
- Como?
Se, em vez de você, o espermatozóide que tivesse dado certo fosse um assassino, um mau-caráter. Não quero falar dos espermatozóides do seu pai, mas num grupo de milhões sempre tem uma ovelha estragada. Uma maça negra. Estatísticamente.
- Você acha mesmo?
- Acho.
- Sei lá.
- E outra coisa. O que passou passou. Não pense mais nisso.
- Mas eu penso, de vez em quando eu penso. Os meus irmãos que não nasceram. Que nomes eles teriam? Eduardo, Gilson, Amaury, Jéssica...
- Marco Antônio...
- Marco Antônio... Imagine, um deles podia ser o ponta-direita que o Brasil precisava em 74. Eu me sinto culpado. Você não se sente culpado?
- Bom, eu tenho 11 irmãos.
- Aí é diferente.
- Por que?
- Não sei. Só sei que entre milhões, bilhões de espermatozóides, todos com os mesmos direitos, só eu me criei. Por acaso. Agora me diga, o que é isso?
- É uisque.
- Não. É a gratuidade da coisa.
- Não sei...
- Você está bêbado.

Virilhice de Angelica
Luiz Fernando Veríssimo (O analista de Bagé. P. 19-22)
Charge zoado.com

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